Dona Cida
Continuação – Leia o capítulo 1
“De volta a nossa casa depois de dois dias no hospital, tentávamos lidar com um mundo que ruíra ao nosso redor.
Por mais que tivéssemos lido algumas cartilhas e soubéssemos algo sobre a forma como a doença de Alzheimer evoluiria em minha mãe, absolutamente nada poderia nos preparar para o que veio: do dia para à noite, minha mãe não andava, não articulava corretamente as frases, não nos reconhecia, tinha visões e nos agredia. Como é que uma pessoa que acorda em um dia dando bom dia e contando do sonho que teve pode simplesmente terminar o dia como uma criança pequena ? Era a pergunta que nos fazíamos continuamente.
Apesar de, na época, estarmos amparados por um serviço de home care fornecido pelo plano de saúde no que dizia respeito a parte da recuperação dela, o tratamento do Alzheimer requeria um conhecimento que faltava nos profissionais que nos atendiam. Assim, recorremos ao geriatra que havia começado a atender minha mãe antes da sua queda no banheiro.
E foi ele quem salvou a nossa pátria: ele nos deu uma verdadeira aula sobre o tratamento de um portador de alzheimer e nossas funções como cuidadores, explicou que o “vislumbre” do estágio intermediário que minha mãe aparentava na época era a forma como o cérebro dela estava tentando se preservar para lidar com o trauma físico – e que ela deveria regredir a próximo do estágio anterior uma vez que o trauma fosse solucionado – nos explicou sobre as convulsões, falou sobre as alucinações e a diferença entre visões e delírios, prescreveu medicamentos para lidar com eles, coordenou o trabalho dos médicos do home care e até mesmo topou realizar uma consulta a domicílio para tentar entender porque minha mãe não voltava a andar, mesmo não sendo diagnosticado problema algum no hospital.
Para encurtar a história, o ocorrido foi o seguinte: os médicos que atenderam minha mãe após a queda não conseguiram enxergar duas fraturas no osso sacro, mesmo após várias radiografias e duas tomografias computadorizadas; eles assumiram que o comportamento completamente incomum da minha mãe fosse o estado natural dela e mandaram-na pra casa alegando que ela não andava por conta de uma provável contratura muscular que seria consequência da queda. Foi necessário que levássemos-na a outro hospital para uma ressonância magnética que sequer chegou a ser realizada pois os médicos diagnosticaram as suas fraturas através das radiografias originais!
De posse de um diagnóstico que, felizmente era menos grave do que poderia ter sido, passamos a nos preocupar com as mudanças que deveríamos fazer em nossa vida.
Depois de todos os filhos terem esgotado as férias e licenças disponíveis para se revezar com os cuidados para com minha mãe e, como era inviável financeiramente que qualquer um de nós deixássemos nossos empregos para passar a cuidar exclusivamente dela, tivemos que contratar uma empregada para ajudar meu pai a cuidar da minha mãe e realizar as tarefas domésticas.
Outro problema imediato era que dona Cida não conseguia se expressar normalmente; assim, passamos lentamente a aprender a interpretar sua expressão corporal para saber o que ela desejava. Aprendemos que quando ela começava a tirar a roupa, significava duas coisas: ou que estava com calor ou que queria ir ao banheiro; aprendemos também que ela ficava mais triste, depressiva quando anoitecia (o que viemos a saber depois que tem nome e sobrenome: efeito crepúsculo).
Descobrimos que a tão falada agressividade, razão de desespero de 10 em cada 10 cuidadores na grande maioria das vezes tinha uma causa justificada: ou era porque ela não conseguia se fazer entender e frutrava-se, ou por que havia razões físicas: dores, fome, sono, sede, calor, frio…
As noites também mostraram-se uma tortura sem igual: ela passava por crises de insônia frequentes, nos obrigando a estabelecer uma escala de vigília noturna. Assim, para cada duas noites de sono, passávamos praticamente uma noite inteira em claro, visto que o sono da minha mãe se consistia em cochilos de 20 minutos intercalados com uma a duas horas de agitação e dor, mesmo debaixo de potentes analgésicos para suas fraturas.
Isso começou a ter seu preço: logo as duas noites de sono não eram suficientes para nos recuperar da noite em claro e em pouco tempo, todos estávamos esgotados, com nossa capacidade de concentração comprometida e vivendo sobre constante estado de irritabilidade. Nossa produtividade no trabalho caiu e vivíamos em constante preocupação com minha mãe.
Além disso sofremos com o sentimento da perda: a dor que sentíamos era a mesma do falecimento de um ente querido. O pior aspecto pelo qual passamos com a doença de Alzheimer foi a mudança completa da personalidade da minha mãe. Era extremamente doloroso olhar para aquela mulher que um dia foi tão forte e tão segura de si e ver uma pessoa frágil, uma mulher que não reconhecíamos.
Com a sua recuperação das fraturas e o retorno da mobilidade, passamos a ter outro problema para nos preocupar: a perambulação e os riscos de outros acidentes domésticos. Como ela retornava lentamente ao estado que considerávamos normal de consciência, durante muitos meses foi como ter uma criança pequena em casa: havia a necessidade de vigília constante, produtos de limpeza e medicamentos precisaram ser escondidos, a ida ao banheiro tinha de ser supervisionada para que ela não saísse sem se limpar ou que ligasse o chuveiro e não tomasse banho. Por várias vezes escapamos de situações mais graves, como quando peguei minha mãe tentando escovar os dentes usando uma faquinha como escova e margarina como pasta de dente.
As noites tornaram-se piores: além de não dormir, ela vagava pelo quarto tentando “arrumá-lo”: arrastava os criados-mudos, abria as gavetas da cômoda e do guarda-roupas, tirava tudo que havia dentro, deitava-se novamente e levantava em seguida, tentava por horas abrir a porta do quarto, que passou a ser trancada.
Conforme a sua memória foi se organizando, vislumbrávamos como é complexa a mente do ser humano. Ela começou a cruzar lembranças antigas com histórias mais recentes e contava suas mesmas histórias com personagens e desfechos diferentes e, certa vez, nos surpreendeu a todos falando italiano, mesmo tendo aprendido apenas algumas palavras desse idioma quando era criança!
E assim, após cerca de seis meses, dona Cida chegou ao estágio mais próximo possível do que estava antes do acidente: tinha uma certa autonomia, mas precisava de supervisão constante. Estava andando bem e conseguia banhar-se, escovar os dentes e fazer suas necessidades apenas com uma pessoa supervisionando. Alimentava-se sozinha, mas não tinha discernimento para realizar tarefas domésticas, apesar de encorajarmos-na a fazer o que fosse possível para que ela se sentisse útil.
Mal sabíamos que isso era só o começo de nossa caminhada.”
Tags: Alzheimer, cuidador, cuidar, cuidar de idosos, familia, idoso.
Rodrigo Freitas
- rodrigo4t@gmail.com
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